Velo pelo teu sono sobressaltado de mágoas e dói-me pensar que um dia pensei em abandonar-te, deixar-te entregue a ti mesmo, para que crescesses. Cheguei a ter as malas feitas, escondidas debaixo da cama para que não soubesses que um dia chegarias a casa e não me voltavas a ver. Cheguei a despedir-me dos amigos sem que eles suspeitassem que o meu “até depois” era um “até nunca mais”, sem que sonhassem que o meu abraço de despedida, era mais forte e mais intenso do que o habitual, cheguei mesmo, imagina tu, a arranjar motivos para uma discussão, para que eu pudesse sair da tua vida sem remorsos.
Todos os dias me imaginava a sair pela porta sem olhar para trás e todos os dias inventava mais uma desculpa para ficar, mais um dia… E tu chegavas feliz e despreocupado, apesar de amaldiçoares a rotina castradora que todos os dias nos engolia mais um bocadinho. E eu estava lá, sempre, com as malas escondidas debaixo da cama à espera da coragem que não vinha, à espera da discussão que não sucedia, à espera de no outro dia conseguir transpor a porta, a própria vida, e correr para os braços da liberdade desejada, que me aguardava e chamava por mim. Depois, quando via que mais um dia caía no regaço da noite e que eu ainda ali estava, amaldiçoava-me por não ter sido a mulher corajosa que eu sonhava ser. E envelhecia, apagando-me todos os dias mais e mais.
A. Luz